12 outubro 2004

boa acção

Nada como ter o carro avariado para fazer uma pequena viagem ao passado, recuando até aos meus dias de estudante universitário em que a utilização do comboio fazia parte da minha rotina diária.

Se algumas coisas evoluíram desde então, outras mantêm-se inalteráveis. Por um lado tenho agora carruagens modernas e mais confortáveis, horários mais preenchidos, estações mais funcionais e maior rapidez na aquisição do bilhete. Por outro lado continua a existir o bacano que se senta ao meu lado com os phones a bombar em altos berros, a senhora que insiste em pôr a conversa em dia com a parceira, dissecando em tom bastante audível a vida e os costumes de toda a vizinhança do prédio dela ou aquele pessoal que continua a insistir na utilização em doses industriais de água de colónia ou desodorizante.

Ontem ao final do dia, já suficientemente stressado e cansado com as atribulações laborais, enquanto aguardava sossegado pela chegada do comboio, sentado num banco da estação – ou apeadeiro, se preferirem – de Moscavide, estava longe de imaginar o momento “bom samaritano” que estava para acontecer.

Faltavam cerca de dez minutos para o comboio quando reparo que está um cão a passear pelos carris. Até aqui nada de especial. Não tarda muito já ele saltou dali para fora. Só que o tempo passava e o animal lá continuava, a andar dum lado para o outro com um ar assustado e desorientado.

Importa referir que nestas estações mais recentes, a altura do cais de embarque até aos carris é bastante grande, pois assim possibilita uma entrada mais fácil dos passageiros nos comboios, uma vez que as portas ficam niveladas com os ditos cais.

Este era precisamente o problema do canídeo. Ele sabia que tinha que sair dali, queria fazê-lo, só que a altura era demasiada para que ele conseguisse atingir a segurança. Para além disso, o bicho estava a meio caminho do comprimento do cais, pois se estivesse próximo de uma das extremidades facilmente conseguiria sair dali

Nos cais, de um e de outro lado da linha, várias pessoas tentavam em vão chamar pelo cão, tentando levá-lo até ao fim do cais, ou então tentando fazer com que ele se aproximasse para que alguém pudesse içá-lo. Só que tudo isto estava a deixar o bicho ainda mais assustado e desorientado.

À minha volta, com o aproximar da hora de chegada do comboio, sentia-se o crescer da ansiedade e de algum pânico nas pessoas. Murmurava-se, suspirava-se, falava-se... “... alguém que vá lá buscar o cão...”, “... alguém que faça alguma coisa...”, “... sai daí bicho, senão ficas debaixo do comboio...”

Só que o animal lá continuava e o tempo já escasseava. Ele já tinha andado uns metros na direcção do fim do cais, na direcção da segurança, mas ainda não os metros suficientes.

Foi então que eu não aguentei. Não sabia quanto tempo faltava, nem olhei para o relógio para saber. Pousei a mala do portátil e a minha bolsa, pedi ao senhor que estava sentado ao meu lado para olhar pelas minhas coisas e desatei a correr pelo cais na direcção do cão.

Quando estava perto dele saltei para os carris e tentei aproximar-me. A minha ideia era pegar nele e pô-lo em cima do cais. Só que o animal estava em pânico. Assim que sentiu a minha presença começou a fugir e não consegui pegar nele. Nessa altura, e uma vez que a distância já não era muita, comecei a correr atrás dele tentando levá-lo até à extremidade do cais. Só que ele, em vez de correr a direito, fintou-me, passando-me ao lado e começando a correr para trás.

Ele parou e eu voltei a tentar aproximar-me. Desta vez ele ficou quieto mas, assim que eu me baixei para o tentar apanhar, a reacção (natural) do animal foi rosnar-me. Falei com ele, tentei acalmá-lo e voltei à carga. Desta vez, para além das rosnadelas tive direito a uma bela dentada. Não desisti. Ele estava assustado e eu queria tirá-lo dali. Mais uma tentativa, mais uma mordidela, sendo que esta deixou-me um dedo bem marcado. Nisto ele desata outra vez a fugir na direcção do final do cais e eu a correr atrás dele, incitando-o a continuar porque a distância era pouca.

Durante os segundos ou minutos em que tudo isto se aconteceu, eu ouvia o barulho das pessoas que estavam nos cais, muito embora não estivesse a prestar qualquer atenção ao que quer que fosse que elas estivessem a dizer. Eu só pensava em tirar dali o cão. De repente, uma frase soou bem alto, acima de qualquer outra e tão perceptível como o ar que respiramos: “O comboio vem aí!”

Eu estava na mesma linha do comboio. O cão na linha ao lado a escassos metros da salvação representada pelo fim do cais. Só havia uma coisa a fazer e, na esperança de que o animal não se lembrasse de mudar de linha, saltei para cima do cais e comecei a correr em direcção aos meus pertences.

À medida que ia passando pela multidão que aguardava o comboio, fiquei estupefacto e revoltado com certas coisas que fui ouvindo. As mesmas vozes que no início se manifestaram em prol da salvação do canídeo, emitiam agora comentários do género “... não tem juízo nenhum, a saltar desta maneira para a linha...”, “... por mim bem que o cão lá ficava...” ou “... o homem deve ser maluco...”

Entrei no comboio e fui logo à janela ver onde estava o cão. Felizmente ele já estava em segurança, o que me deixou aliviado. Quando finalmente me sentei, olhei à minha volta e senti-me observado por olhares incriminadores, como se eu tivesse cometido um qualquer pecado capital. A hipocrisia e o egoísmo do bicho homem, infelizmente, não param de me surpreender. À medida que vou conhecendo as pessoas, mais gosto dos animais.

Quem diria que as boas acções deixam marcas... o meu dedo que o diga.

e dei-a

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